domingo, 10 de outubro de 2010

Caça ao gato (2)

Na minha meninice estragar ou desperdiçar alimentos era pecado ou, pelo menos, um acto familiarmente reprovável. Daí a culinária dos restos, dos aproveitamentos, que por vezes eram ainda mais apetitosos que os primeiros pratos. Tal prática era respaldada pelo cuidado higiénico na preservação, ainda antes dos revolucionários tupperware e dos sacos de plástico. Não que na minha família isso fosse uma necessidade, mas eram hábitos arrastados da tradição de outros tempos e pelas privações do tempo da guerra por parte de alguém que ainda vivia lá em casa. Não sou fã dessa prática que, contudo, chegava a ser uma arte, ainda exercitada na minha própria casa na roupa velha do dia de Natal. Basta dosear bem a confecção. Por outro lado, as famílias são agora muito mais pequenas, os horários de cada um são desfasados, os gostos mais diversificados e livres de imposições (que pena o "se não gostas comes duas vezes" nunca se aplicar às lambarices...) e o serviço de refeições já não é tão centralizado como dantes. Deitar pão para o lixo ainda é, para mim, como reminiscência desses tempos, algo que me toca na consciência. Não como uma facada, mas como uma simples alfinetada, que não mata mas incomoda.

Nas traseiras da casa onde morei e que ainda visito amiúde esvoaça e pousa um bando de pombas que aí faz a sua vida e dá vida aos quintais abandonados. A oportunidade de as alegrar com restos de pão seco esboroado ou, noutra receita de aproveitamento, pão amolecido em água, resolve satisfatoriamente o meu pudor em deitar fora o pão sobrante da casa. E sempre são uns momentos para descontrair, observando de perto a complexa sociedade columbófila cá do quarteirão convocada com o espalhar das migalhas: os amores que são mais importantes que a comida, os cuidados aos borrachos que mal voam, as dominâncias e submissões no grupo, os que aparecem de novo, as penas luzidias e as que metem pena, os que nunca mais vi.

Há uns largos meses apareceu por aí, e ficou, uma gata, ainda novita, com ar decidido e independente. Há anos que não havia gatos residentes nestes quintais e telhados. Só algumas visitas ocasionais de algum explorador fugidio. Esta apareceu da mesma forma, esquiva como todos os outros. Apesar da idade mostrava-se segura e indiferente aos eventuais olhares de curiosidade, certa que a distância a que se mantinha de início garantia qualquer eventualidade. A diferença principal era ser uma gata: via-se bem pelo focinho pontiagudo e pela cabeça proporcionalmente mais pequena. A distância não permitia outras confirmações mais explícitas. Mas havia outra diferença. Deixava-se ser vista com alguma frequência, mas sempre ao longe. Um dia surpreendêmo-nos no terraço muito perto um do outro. Enquanto que eu fiquei especado, num segundo ela desapareceu em três pulos que me deixaram sem fôlego para lá de muros bem altos e dos telhados. Em várias outras ocasiões voltamos a ter encontros quase imediatos, embora de outro cariz. Com a sua chegada, as "minhas" pombas passaram a ser miradas com olhares suspeitos e até com algumas corridas rápidas o que motivou a sua maior proximidade. Para um gato dos telhados, uma pomba não é símbolo de paz e liberdade, é simplesmente comida embrulhada com penas, carninha fresca, um bom jantar. Muitas pombas e um só gato é a melhor oportunidade de surpreender uma mais distraída ou um borracho ainda meio pateta e mau voador. Era também uma mancha no meu orgulho de guardador de pombas. Quem iria alegremente chegar numa revoada e devorar os meus restos de pão com um predador de garras e dentes afiados à espreita? Está claro de ver que algumas vezes partilhamos algumas corridas no curto terraço, sempre no mesmo sentido, eu sempre atrás e as pombas alvoroçadas por cima. Nem me passaria pela cabeça fazer uma eficaz ou sequer letal caça ao gato. Era só uma caça simulada, mas necessária, como os gatos às vezes fazem. No entanto, aquele olhar frio e concentrado que a gata fazia quando se fixava numa delas e se aproximava baixinha, em câmara lenta, enquanto que a pobre afagava distraidamente as penas na borda do telhado do anexo, ou no grupo que debicava furiosamente mais no chão que no pão quase ralado que eu lhes deitava para prolongar o espectáculo, não me convencia mesmo nada que a bichana iria estacar ao alcance da pomba escolhida e só lhe desse então uma patada seca de unhas encolhidas. Naturalmente, não ficámos bons amigos. Tolerávamo-nos sem agressividade mútua, mantendo uma distância segura definida na psicologia animal que partilhamos desde o Triássico ou por aí. Quando me via, aprendeu a posicionar-se longe e fazer-se distraída ou desinteressada. Parece-me até que quase sempre sentia então vontade de se sentar, alçar a pata de trás e de se lamber, como que a dizer algo que às vezes eu sentia como um silenciosamente eloquente insulto de desprezo. Depois, em dois pulos deixava de a ver. Aceito-te desde que não te atires às pombas.

Voltei a vê-la mais tarde, nem parecia a mesma gata. Ora se roçava voluptuosamente em esquinas de muros ásperos e nos ramos baixos da árvore que atira sobre as ruínas de um telhado, ali ao lado, ora se rebolava, quase a cair na borda do beiral, ignorando tudo o que se passava à volta. Andaria gato por aí, pensei, que é tempo deles, e delas. Meses depois, sem surpresa, volto a vê-la, manifestamente grávida, uma barrigona tesa pendurada por baixo de uma gata ainda pequena e magricelas. Andava rasteira, ainda mais fugidia que antes, já não ia atrás das pombas. Notei-lhe agora um olhar mais desconfiado, mirando em redor como que a procurar algo para além do seu míope campo de visão. Passou-me pela cabeça que estivesse eminente o que aconteceu há muitos anos, no tanque de lavar em cimento, por baixo do coberto ao lado da porta da cozinha. Da noite para o dia, (é espantoso como era parecida com esta, e mais de trinta anos se passaram) uma outra gata viera parir naquele recanto tão desabrigado, pelo menos no meu entender. Mas, ao mesmo tempo, atrevo-me a julgar, certa de alguma protecção humana. Nos dias seguintes, apesar de fugir desalmadamente num coxeio que seria esgar de dor quando era confrontada fora do ninho, ou de se comportar como um leopardo dos Himalaias se estivesse enroscada no chão frio com aquelas coisinhas peludas que mal mexiam, consegui convencê-la a ocupar o conforto de uma caixa de cartão grosso e uma velha camisola. Isto aconteceu pelo menos durante um par de semanas, até desaparecer misteriosamente. Mas não. Desta vez o espaço por baixo do cada vez mais velho tanque de cimento não agradou à bichana, já aflita. Nessa altura passara eu a visitar todos os dias esta que fora, mas já não era há muitos anos, a minha casa. Durante uns dias, a primeira coisa que fazia era ir espreitar o quintal. Nada, nem sinal da gata. Tinha de certeza já parido a sua primeira ninhada. Com outras preocupações, quase a esqueci.

Semanas depois, volto a vê-la, furtiva e arisca como quase sempre, cruzando ligeira o alto do muro em direcção ao telhado em ruínas. Notei-lhe umas peles proeminentes pingando por baixo do corpito ainda mais mirrado. Já teve os gatinhos, confirmei?
Terão sobrevivido? Onde estariam?

2 comentários:

Ana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana disse...

Onde está a caça ao gato 3? todas as boas histórias têm uma trilogia! ;D

(o comentario anterior era meu..)