domingo, 10 de outubro de 2010

Caça ao gato (2)

Na minha meninice estragar ou desperdiçar alimentos era pecado ou, pelo menos, um acto familiarmente reprovável. Daí a culinária dos restos, dos aproveitamentos, que por vezes eram ainda mais apetitosos que os primeiros pratos. Tal prática era respaldada pelo cuidado higiénico na preservação, ainda antes dos revolucionários tupperware e dos sacos de plástico. Não que na minha família isso fosse uma necessidade, mas eram hábitos arrastados da tradição de outros tempos e pelas privações do tempo da guerra por parte de alguém que ainda vivia lá em casa. Não sou fã dessa prática que, contudo, chegava a ser uma arte, ainda exercitada na minha própria casa na roupa velha do dia de Natal. Basta dosear bem a confecção. Por outro lado, as famílias são agora muito mais pequenas, os horários de cada um são desfasados, os gostos mais diversificados e livres de imposições (que pena o "se não gostas comes duas vezes" nunca se aplicar às lambarices...) e o serviço de refeições já não é tão centralizado como dantes. Deitar pão para o lixo ainda é, para mim, como reminiscência desses tempos, algo que me toca na consciência. Não como uma facada, mas como uma simples alfinetada, que não mata mas incomoda.

Nas traseiras da casa onde morei e que ainda visito amiúde esvoaça e pousa um bando de pombas que aí faz a sua vida e dá vida aos quintais abandonados. A oportunidade de as alegrar com restos de pão seco esboroado ou, noutra receita de aproveitamento, pão amolecido em água, resolve satisfatoriamente o meu pudor em deitar fora o pão sobrante da casa. E sempre são uns momentos para descontrair, observando de perto a complexa sociedade columbófila cá do quarteirão convocada com o espalhar das migalhas: os amores que são mais importantes que a comida, os cuidados aos borrachos que mal voam, as dominâncias e submissões no grupo, os que aparecem de novo, as penas luzidias e as que metem pena, os que nunca mais vi.

Há uns largos meses apareceu por aí, e ficou, uma gata, ainda novita, com ar decidido e independente. Há anos que não havia gatos residentes nestes quintais e telhados. Só algumas visitas ocasionais de algum explorador fugidio. Esta apareceu da mesma forma, esquiva como todos os outros. Apesar da idade mostrava-se segura e indiferente aos eventuais olhares de curiosidade, certa que a distância a que se mantinha de início garantia qualquer eventualidade. A diferença principal era ser uma gata: via-se bem pelo focinho pontiagudo e pela cabeça proporcionalmente mais pequena. A distância não permitia outras confirmações mais explícitas. Mas havia outra diferença. Deixava-se ser vista com alguma frequência, mas sempre ao longe. Um dia surpreendêmo-nos no terraço muito perto um do outro. Enquanto que eu fiquei especado, num segundo ela desapareceu em três pulos que me deixaram sem fôlego para lá de muros bem altos e dos telhados. Em várias outras ocasiões voltamos a ter encontros quase imediatos, embora de outro cariz. Com a sua chegada, as "minhas" pombas passaram a ser miradas com olhares suspeitos e até com algumas corridas rápidas o que motivou a sua maior proximidade. Para um gato dos telhados, uma pomba não é símbolo de paz e liberdade, é simplesmente comida embrulhada com penas, carninha fresca, um bom jantar. Muitas pombas e um só gato é a melhor oportunidade de surpreender uma mais distraída ou um borracho ainda meio pateta e mau voador. Era também uma mancha no meu orgulho de guardador de pombas. Quem iria alegremente chegar numa revoada e devorar os meus restos de pão com um predador de garras e dentes afiados à espreita? Está claro de ver que algumas vezes partilhamos algumas corridas no curto terraço, sempre no mesmo sentido, eu sempre atrás e as pombas alvoroçadas por cima. Nem me passaria pela cabeça fazer uma eficaz ou sequer letal caça ao gato. Era só uma caça simulada, mas necessária, como os gatos às vezes fazem. No entanto, aquele olhar frio e concentrado que a gata fazia quando se fixava numa delas e se aproximava baixinha, em câmara lenta, enquanto que a pobre afagava distraidamente as penas na borda do telhado do anexo, ou no grupo que debicava furiosamente mais no chão que no pão quase ralado que eu lhes deitava para prolongar o espectáculo, não me convencia mesmo nada que a bichana iria estacar ao alcance da pomba escolhida e só lhe desse então uma patada seca de unhas encolhidas. Naturalmente, não ficámos bons amigos. Tolerávamo-nos sem agressividade mútua, mantendo uma distância segura definida na psicologia animal que partilhamos desde o Triássico ou por aí. Quando me via, aprendeu a posicionar-se longe e fazer-se distraída ou desinteressada. Parece-me até que quase sempre sentia então vontade de se sentar, alçar a pata de trás e de se lamber, como que a dizer algo que às vezes eu sentia como um silenciosamente eloquente insulto de desprezo. Depois, em dois pulos deixava de a ver. Aceito-te desde que não te atires às pombas.

Voltei a vê-la mais tarde, nem parecia a mesma gata. Ora se roçava voluptuosamente em esquinas de muros ásperos e nos ramos baixos da árvore que atira sobre as ruínas de um telhado, ali ao lado, ora se rebolava, quase a cair na borda do beiral, ignorando tudo o que se passava à volta. Andaria gato por aí, pensei, que é tempo deles, e delas. Meses depois, sem surpresa, volto a vê-la, manifestamente grávida, uma barrigona tesa pendurada por baixo de uma gata ainda pequena e magricelas. Andava rasteira, ainda mais fugidia que antes, já não ia atrás das pombas. Notei-lhe agora um olhar mais desconfiado, mirando em redor como que a procurar algo para além do seu míope campo de visão. Passou-me pela cabeça que estivesse eminente o que aconteceu há muitos anos, no tanque de lavar em cimento, por baixo do coberto ao lado da porta da cozinha. Da noite para o dia, (é espantoso como era parecida com esta, e mais de trinta anos se passaram) uma outra gata viera parir naquele recanto tão desabrigado, pelo menos no meu entender. Mas, ao mesmo tempo, atrevo-me a julgar, certa de alguma protecção humana. Nos dias seguintes, apesar de fugir desalmadamente num coxeio que seria esgar de dor quando era confrontada fora do ninho, ou de se comportar como um leopardo dos Himalaias se estivesse enroscada no chão frio com aquelas coisinhas peludas que mal mexiam, consegui convencê-la a ocupar o conforto de uma caixa de cartão grosso e uma velha camisola. Isto aconteceu pelo menos durante um par de semanas, até desaparecer misteriosamente. Mas não. Desta vez o espaço por baixo do cada vez mais velho tanque de cimento não agradou à bichana, já aflita. Nessa altura passara eu a visitar todos os dias esta que fora, mas já não era há muitos anos, a minha casa. Durante uns dias, a primeira coisa que fazia era ir espreitar o quintal. Nada, nem sinal da gata. Tinha de certeza já parido a sua primeira ninhada. Com outras preocupações, quase a esqueci.

Semanas depois, volto a vê-la, furtiva e arisca como quase sempre, cruzando ligeira o alto do muro em direcção ao telhado em ruínas. Notei-lhe umas peles proeminentes pingando por baixo do corpito ainda mais mirrado. Já teve os gatinhos, confirmei?
Terão sobrevivido? Onde estariam?

terça-feira, 5 de outubro de 2010

PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

Gravura da colecção do autor, em moldura da época, não restaurada (100 anos de lugar esconso fazem estragos...)



5 de Outubro de 1910: a BANDEIRA NACIONAL


A bandeira nacional verde-rubra só surgiu depois da instauração da República. Na República de 5 de Outubro de 1910 as bandeiras que esvoaçaram pelas cidades e vilas foram as dos grupos políticos que apoiaram ou aderiram aos revoltosos, e eram muitas. A versão aprovada, da autoria de Columbano Bordalo Pinheiro (Lisboa, 21 de Novembro de 1857 - Lisboa, 6 de Novembro de 1929) foi divulgada numa publicação da Imprensa Nacional, já em 1911, junto com os restantes símbolos gráficos que a representam.

100 anos depois, é utilizada sem alterações (exceptuando as versões chinesas do Euro-2004 e as que no verso ou, pior ainda, em abjecta sobreposição, contêm menções a marcas comerciais).

Tenho reparado que muitas bandeiras, incluindo "oficiais", estão erradas: a faixa que contém os escudos dourados (aceitavelmente reproduzidos a amarelo vivo) não é vermelha (ou encarnada, de acordo com a latitude...). É carmim.

Com muito gosto, partilho convosco, neste Centenário, algumas páginas de um exemplar daquela publicação da minha colecção particular.

Que a República esteja convosco!













domingo, 3 de outubro de 2010

CAÇA AO GATO!! (1)

Ontem à noite caiu para o meu terraço (fundo e confinado, por sinal) um gatito (3 meses?) que seria de uma ninhada que nasceu de uma vadia e muito arisca bicha aqui dos quintais e telhados próximos. Senti um miar de choro já muito tarde de noite. Não o descobri. Estava muito escuro e os numerosos vasos proporcionam esconderijo perfeito. Logo de manhã, com a primeira luz cinzenta e molhada deste outono, o miar desalmado e já algo rouco levou-me logo ao refúgio. Seco apesar das fortes chuvas e ventos desta madrugada (e até desse momento de busca, com bátegas violentas), encontrei-o no fundo do velho tanque de cimento, não usado há décadas, por baixo do coberto ao lado da porta da cozinha. Estava encolhido num canto, protegido pelo telhadito da tábua de lavar do tanque. Pequenino e enrolado caberia aconchegado e quente na palma de uma mão, se fosse manso. Ao meu espreitar, botou ares de grande felino selvagem, soprando guturais roncos (coitados..., fraquinhos), mostrando as ameaçadoras dentuças (agulhitas ainda de leite...), arreganhando as medonhas fauces (que cor de rosa bonita!) e encolhendo-se numa bolita ainda mais pequena de pêlo mesclado que não sabe ainda eriçar (mas que deveria ser macio). Nem três boas fatias de fiambre, que devorou depois de instantes de desconfiança no espaço e tempo sem intromissão que lhe concedi, lhe tiraram a sanha de fera encurralada. Nem sequer o cheirinho calmante e perfumado de leite morno que pus adiante o comoveu, depois disso. Um autêntico selvagem! Bastou eu olhar para o lado para estudar uma estratégia de resgate e logo saltou, através da minha estupefacção, para fora do tanque, indo direitinho, rasteirinho, rapidinho para a floresta virgem dos muitos vasos folhosos ao fundo do quintal murado. E agora? Umas jovens vizinhas, coitadas, que agora assistiam pesarosas das janelas do 3º às minhas operações, miúdas sensíveis aos miados de desespero, contaram cá para baixo como tentaram durante a noite "salvar-lhe" a vida, a ele, pobre e indefeso gatito, que estava só, em território desconhecido, isolado da progenitora e da restante prole. Ingenuamente, desceram noite cerrada uma cesta pendurada uma corda, forradinha para o bicho se alojar confortavelmente e ser içado por virginais intenções para as nuvens. Nada, lamentaram-se. Só uma valente molha, que chuvia desalmadamente na varanda desabrigada. O gatito, se deu conta do que se passava, deve mesmo ter pensado que o queriam levar para o céu, não o dos pardais que até serão o seu principal futuro sustento, mas o dos gatos, que deve ser mais medonho ainda. E como dessa catequese ainda não tivera lições, desconfiou das boas intenções. Mas alguém de senso acha mesmo que para salvar o peixe do rio que saltou para o lago vizinho a solução é lançar-lhe um enorme e ameaçador anzol niquelado? Bom, a solução foi, com a colaboração dessas mocinhas (uma delas arqueóloga FLUP... e mais não digo), utilizar o velho processo com dezenas de milhares de anos, ou mais: espicaçar a fera para fora do covil, cercá-la num canto e atacar vertiginosamente (daí o: CAÇA AO GATO). A arma? Um misto de arma de arremesso e de armadilha móvel: ... uma toalha grossa. Enquanto a sua atenção era chamada para outro ponto, zás!. Nem quis acreditar. À primeira investida, aquela molinha peluda pronta a saltar foi apanhada. Não resistiu (eu ainda tinha nas mãos o cheiro do fiambre..., será que isso teve alguma importância?). Foi logo enrolado (chi!,... quase nem lhe senti o peso ou a forma, era mesmo pequenino) e levantei-o ao nível do telhado do anexo que serve de ponto de contacto com os domínios que já bem conhecia dos passeios colectivos em família. Nesse momento ouve-se um coro de miados fininhos. Não sei como, mas os irmãos pressentiram que algo de especial ia ocorrer naquele instante e era preciso assinalar uma trajectória de fuga segura. Nem o vi depois, só senti de imediato a tolha solta e as pingas grossas de uma chuvada a cair-me nas costas, através da camisa. Sem pena e com pena nossa, foi à sua vida, recebido, fora de alcance da vista pelos irmão e pela gata cuja cabeça aparecera num canto afastado, sorrateira, olhos bem abertos, expectante, como sempre. Tudo acaba bem, com uma recepção familiar, só percebida pelas pontas oscilantes de vários rabitos fininhos alçados a tremelicar do outro lado da cumeeira do telhado do anexo, confraternizando.
Até já! Vemo-nos por aí! Viva a liberdade (também) dos gatos dos telhados! Abaixo a doce prisão dos revisionistas cuja cartilha é ronronar em colos, rasgar cortinas, comer croquetes sabe-se lá de quê e posar para fotos com ar dengoso! Viva a caça às pombas e aos pardais, e outra bicharada! Viva o dormir ao sol em telhado de lusalite quente, o rebolar lentamente pelos cobertos inclinados. Viva o lamber desalmado de um corpito miseravelmente encharcado pela chuva para, meia hora depois, qual fénix invertida --não pelo fogo, mas pela água--, renascer num nobre e garboso gato de pêlo lustroso! Viva a independência! E o correr e o saltar, o subir às árvores com ímpeto, para nada, por gozo puro. Vivam as lutas assanhadas por território e a partilha de alguma pele de galinha atirada lá do alto! Vivam os prazeres de se sentirem afagados por um ramito nas costas ou uma simples esquina! Porque estão vivos, porque nasceram gatos, porque vivem como gatos e hão-de morrer gatos, orgulhosamente gatos. Verdadeiros gatos, que não precisam tomar ar de felizes nem de domesticar humanos por comida e sobrevivência.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Quanto custa 1 litro de água? E um litro de gasolina?

Depende.
Se for água da "torneira", em V. N. de Gaia, o preço é:

0.00033 €/litro (entre 0 e 5000 litros por mês)
0.0096 €/litro para os seguintes consumos desde 5000 a 10000 litros por mês) e
0.018 €/litro para os consumos seguintes.

A qualidade desta água é controlada na produção numerosas vezes por dia e, com frequência definida por lei, na rede de distribuição. Os resultados são consistentemente bons, como na maioria dos sistemas de distribuição em Portugal.

Os custos indicados são realmente baixos, se excluirmos as alcavalas que surgem na factura e que não correspondem nem à água nem à habilidade da "taxa de disponibilidade" (se a moda pega, vamos ter que pagar regularmente ao patrão a disponibilidade de um emprego, aos CTT a disponibilidade do serviço de carteiro, às Estradas de Portugal a disponibilidade dos buracos e das obras nas vias e a falta delas, a disponibilidade de passeios nas cidades, de ar para respirar, etc.).

Os preços da água pública variam, e muito, de local para local, até mesmo dentro do mesmo fornecedor... segundo consta.

Se se tratar de água engarrafada, sem gás, o preço ao consumidor é também variável, dependendo da origem/marca, do volume e tipo da embalagem e do local de venda (entre outros factores menores). A realidade é que se paga fundamentalmente plástico/vidro, gasóleo e moda. O resto é marginal. Os preços das águas engarrafadas podem rondar:

-entre o mínimo de 0.05 €/litro (preço aparentemente excepcional obtido hoje na lista de fornecimentos online de uma grande superfície), mas mais frequentemente andam à volta de 0.20 -0.30 €/ litro para embalagens mais correntes, podendo atingir 1.18 €/ litro, isto só para águas nacionais, minerais ou de nascente. Para as águas estrangeiras, os preços são em média muito mais altos, em regra vários €/litro para uma água "normalíssima". Os preços, como se vê por esta amostra, variam bastante. Mas nota-se que o mercado funciona e quem quer água engarrafada encontra-a a bom preço.

Será que banda de preços nas águas de distribuição pública são mais ou menos variantes que a banda de preços das águas engarrafadas?

O consumo entre uma ou de outra é uma opção pessoal (cultural e económica, principalmente, mas também de facilidade), sendo certo que a esmagadora maioria da água consumida não tem funções alimentares no caso da água de distribuição pública, ao contrário do que sucede com a água engarrafada.

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E quanto custa hoje um litro de gasolina/ gasóleo/ combustíveis?

A resposta não pode ser dada de forma simples porque, tal como a água, não tem preço fixo e está sempre a mudar (nota: "mudar", palavra que, referida a preços, passou a ser sinónimo de subir...). Mas muitos de nós sabem que está muito cara e a encarecer. E a condicionar as subidas de preços de bens e serviços e a descida de rendimento disponível do cidadão comum para despesas não obrigatórias.

O mesmo se passa no resto da Europa e até nos Estados Unidos da América, onde se diz que grassa o pré-caos económico e o conceito de tabelar preços, seja no que seja, simplesmente não faz sentido, é um conceito que não existe. Do outro lado do Atlântico, onde as empresas petrolíferas estão a ser questionadas pelo Congresso (se assim é, é porque é coisa séria...) pelos aparentemente exagerados lucros em tempo de crise, as queixas sobre os preços dos combustíveis são enormes e, como cá, o consumo mostra tendência de retracção. Há já alarme social. E têm razão. Os desgraçados americanos têm um preço médio para a gasolina que atingiu há dias um máximo de sempre, de 3.937 US Dollar. Mas por galão. Feitas bem todas as continhas... dá 0.663 €/litro. Uma verdadeira exorbitância!!! E as petrolíferas, só no retalho, a ganhar dezenas de milhares de milhões ao ano.... Um escândalo. Mas só lá. Aqui, nem por isso. Ou, pelo menos só para depois da passagem do Euro (o da bola, claro), e só se perdermos. Se ganharmos, vamos todos passar fominha e frio no inverno (enrolados em cachecóis verde-rubros), mas todos contentinhos: "A taça é nossa!". Glória à Lusitanidade: 500 anos depois (do lado errado do Mundo) voltamos a passar além da Taprobana.

ver também: http://hypertextbook.com/facts/2004/JosephSabatelle.shtml

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Um hidrogeólogo (robótico) em Marte






A sonda marciana Phoenix tocou com êxito total a superfície gelada do Planeta Vermelho às 16:53 (Pacific Time) do dia 25 de Maio, já no início da madrugada do dia 26 em Portugal (um dia muito especial...). O local de pouso fica na região árctica conhecida por Vastitas Borealis, aos 68 graus de latitude norte e 234 graus de longitute este (não deve ser de Greenwich...).

Aos últimos minutos, emocionantes, pude assistir em directo através de NASA TV: http://www.nasa.gov/multimedia/nasatv/

O programa científico destinado a esta sonda é ainda mais emocionante. Dele se destaca a recolha de amostras de água (gelo) existente no solo ("permafrost") e a sua análise com instrumentos embarcados. Aguardemos o início da fase operacional. Para já, decorrem testes e a preparação de todo o equipamento para a sequência de experiências que se conta durará 3 meses. Dado o historial de sucesso das missões que pousaram correctamente (há também um lado oculto e triste de missões perdidas...), espera-se ansiosamente um grande manancial de ciência e uma extensão dos trabalhos. Não haverá neste caso a espectacularidade visual dos «globe trotters» geo-robôs Opportunity, Spirit e mesmo o pioneiro Sojourner, mas não deixa de ser a primeira missão objectivada para a água, em particular para a água subterrânea e para a água no solo, uma vez que a água na atmosfera e a água quimicamente fixa em alguns minerais já tinha sido identificada.

Resta em aberto saber se em Marte há vestígios de vida detectáveis pelos processos analíticos instrumentais que foram embarcados. Quanto aos vestígios de vida de um passado ignoto, muito provavelmente, ainda que a sonda aterrasse em cima de uma trilobite gigante ou num monte de ossos de dinossauro, não detectaria sinais de vida fóssil. Aqui na Terra, com o paradigma biológico vigente, e do qual fazemos parte, os estudos de morfologia são determinantes na paleontologia, que só marginalmente contacta com a geoquímica. No caso de existir vida actualmente em Marte (seguramente não há florestas, nem mares fervilhantes de vida, nem aves ou insectos esvoaçantes) poderá ser tão diferente da vida terrestre e estar instalada em ambientes tão exóticos que pode passar despercebida às sondas móveis ou fixas. Poderá manifestar-se por indícios bioquímicos, mas dificilmente saberíamos interpretar cientificamente os resultados por falta de provas. A vida em Marte pode ter existido ou existir nos nossos dias em condições tão estranhas e até "improváveis", à semelhança do que acontece na Terra. São exemplos os recentemente descobertos «black smokers" e os ainda mais recentes lagos de metano líquido existentes nos oceanos (já conhecia este ecossistema?) ou até o seio das rochas basálticas a vários quilómetros de profundidade, como no Estado de Washington, EUA, as nascentes hidrotermais em zonas vulcânicas activas ou o interior profundo das enormes pilhas de sedimentos onde se gerará o gás natural e o petróleo. O que estamos a fazer lá longe no Universo, pouco mais é que mandar sondas sofisticadas e dispendiosas para tentar detectar (concedam-me a bondade da caricatura e o cepticismo metodológico inerente) alguma coisa como um eventual elefante que possa viver no alto dos Himalaias através de um detector de cheiro dos seus dejectos ou um urso polar na floresta amazónica através da alergia que o pêlo poderia causar a um ser muito sensível...

Se tivéssemos ideia de que a quantidade de biomassa que existe na Terra abaixo do nível dos solos e dos fundos dos oceanos é, nos cálculos mais conservadores, pelo menos equivalente à que existe combinada na terra, mar e ar do nosso planeta Terra (e que mais ou menos reconhecemos e quantificamos), pensaríamos de forma mais humilde e diferente relativamente à questão da vida nos outros planetas. Ainda por cima, essa "nova" biomassa profunda parece não ter muitas dependências com a biomassa "convencional", mas seguramente participa e condiciona processos geológicos importantes. Esta "estranha forma de vida", que só agora começa a ser reconhecida, pode não ser mais que uma ampla representação da longuíssima estabilidade em ecossistemas "extremos" (aos nossos olhos, claro) do nosso planeta, em geral pouco afectados por sistemas exteriores (água, energia, nutrientes, substracto) e que trazem para o ano 4.56?.??2.008 da era da criação da Terra o que poderá ter-se estabelecido bem cedo. Pelo menos por volta do ano 750.000.000 (a contar do ano Zero) já existiria vida nos oceanos terrestres e o planeta Terra, tal como Marte, estavam na sua infância despreocupada, apesar do bombardeamento cósmico constante. Será que vida aparentada com esta (que já não seria a primordial, seguramente anterior!) pode estar ainda activa em Marte? Caso se adopte o paradigma do paralelismo evolutivo, em muitos dos aspectos, que vigoraria entre a Terra e Marte nos primeiros centos de milhões de anos após a condensação planetária, parece poderem justificar-se muitas analogias e condições propícias à manutenção da vida em "ecossistemas" semelhantes. Como Marte já não tem oceanos, esqueçam-se os "black smokers" e os lagos de metano subaquáticos. Mas, nem toda a água desapareceu. Seguramente, em Marte, vastíssimas quantidades de água encontrar-se-ão em aquíferos (detesto a expressão sinónima "lençóis subterrâneos", mas por respeito à maioria da minoria das pessoas que foram educacioalmente expostas a conceitos básicos de água e recursos hídricos, devo mencioná-lo) e em solos gelados ("permafrost"), para além das conhecidas calotes polares. As espessas pilhas de sedimentos reveladas por imagens de alta resolução nas falésias dos enigmáticos Valles e Chasma e das inúmeras crateras de impacto mostram condições potenciais de armazenamento e circulação de fluidos em poros. A água corrente e represada foi o meio de transporte e de deposição de sedimentos de tipos diversos em vastas extensões, gerando rochas sedimentares marcianas já analisadas in situ. E a porosidade fissural (fracturas) nos basaltos marcianos? E a fracturação (tectónica ?) e a alteração "hidrotermal" que afecta afloramentos rochosos visitados pelas sondas móveis? Quanto à criação da vida, esse passo é muito mais complexo de analisar. E quase 100% especulativo, para não falar no grande ruído conceptual da não ciência e do disparate que acompanha este tema. E não me refiro a questões enquadradas na crença religiosa ou similar. A este respeito estaremos ainda, parece-me, como estávamos há uns anos atrás quando reconhecemos (os geólogos, pelo menos) que a Explosão Câmbrica não poderia ter-se dado a partir do "nada". Até essa altura as "evidências" fósseis de períodos geológicos anteriores (a grande maioria da história do planeta Terra) não eram suficientemente reconhecidas ou bem estudadas (só tardiamente se incluem com sucesso métodos isotópicos, e muitos outros, alguns já existentes e comprovados). Actualmente, a "árvore" da vida recua os seus ramos muito mais atrás no tempo, mas as raizes estão ainda muito bem escondidas. E até pode ser que nem estejam cá, mas num outro local qualquer do Universo... Quem sabe se em Marte. Veja-se o caso polémico do célebre meteorito Allan Hills ALH84001, descoberto na Antárctida, curiosamente o local mais parecido com Marte.



Entretanto, horas ansiosas depois, chegam de Marte algumas das primeiras imagens da Phoenix, cruas ainda, da máquina e da vasta e monótona planície de solos gelados poliginais onde agora, calmamente, se arregaçam as mangas do braço robótico que há-de escavar o primeiro poço marciano...


O seguinte video, produzido pela NASA mostra como é possível colocar em Marte uma tal peça de alta tecnologia:



E, se a admiração não for suficiente, "para mais tarde recordar", um satélite artificial de Marte especializado na obtenção de imagens voltou-se para o lado e tirou, a 310km de distância, uma "fotografia" histórica da sonda Phoenix durante a fase de descida em paraquedas, uns segundos antes da sua libertação e do suave "touch down" apoiado em retro-foguetes:


Mais adiante, seguramente ainda veremos um seu retrato tirado bem do alto, com a Phoenix a escavar freneticamente o solo marciano à procura de água, como qualquer prosaico poceiro terrestre...

domingo, 20 de abril de 2008

Energia na água

O ciclo da água é mantido em movimento por meio de duas fontes principais de energia: a solar e a gravítica.


A foto (M.Abrunhosa) foi a forma mais elementar que concebi para ilustrar visualmente a ideia.