domingo, 3 de outubro de 2010

CAÇA AO GATO!! (1)

Ontem à noite caiu para o meu terraço (fundo e confinado, por sinal) um gatito (3 meses?) que seria de uma ninhada que nasceu de uma vadia e muito arisca bicha aqui dos quintais e telhados próximos. Senti um miar de choro já muito tarde de noite. Não o descobri. Estava muito escuro e os numerosos vasos proporcionam esconderijo perfeito. Logo de manhã, com a primeira luz cinzenta e molhada deste outono, o miar desalmado e já algo rouco levou-me logo ao refúgio. Seco apesar das fortes chuvas e ventos desta madrugada (e até desse momento de busca, com bátegas violentas), encontrei-o no fundo do velho tanque de cimento, não usado há décadas, por baixo do coberto ao lado da porta da cozinha. Estava encolhido num canto, protegido pelo telhadito da tábua de lavar do tanque. Pequenino e enrolado caberia aconchegado e quente na palma de uma mão, se fosse manso. Ao meu espreitar, botou ares de grande felino selvagem, soprando guturais roncos (coitados..., fraquinhos), mostrando as ameaçadoras dentuças (agulhitas ainda de leite...), arreganhando as medonhas fauces (que cor de rosa bonita!) e encolhendo-se numa bolita ainda mais pequena de pêlo mesclado que não sabe ainda eriçar (mas que deveria ser macio). Nem três boas fatias de fiambre, que devorou depois de instantes de desconfiança no espaço e tempo sem intromissão que lhe concedi, lhe tiraram a sanha de fera encurralada. Nem sequer o cheirinho calmante e perfumado de leite morno que pus adiante o comoveu, depois disso. Um autêntico selvagem! Bastou eu olhar para o lado para estudar uma estratégia de resgate e logo saltou, através da minha estupefacção, para fora do tanque, indo direitinho, rasteirinho, rapidinho para a floresta virgem dos muitos vasos folhosos ao fundo do quintal murado. E agora? Umas jovens vizinhas, coitadas, que agora assistiam pesarosas das janelas do 3º às minhas operações, miúdas sensíveis aos miados de desespero, contaram cá para baixo como tentaram durante a noite "salvar-lhe" a vida, a ele, pobre e indefeso gatito, que estava só, em território desconhecido, isolado da progenitora e da restante prole. Ingenuamente, desceram noite cerrada uma cesta pendurada uma corda, forradinha para o bicho se alojar confortavelmente e ser içado por virginais intenções para as nuvens. Nada, lamentaram-se. Só uma valente molha, que chuvia desalmadamente na varanda desabrigada. O gatito, se deu conta do que se passava, deve mesmo ter pensado que o queriam levar para o céu, não o dos pardais que até serão o seu principal futuro sustento, mas o dos gatos, que deve ser mais medonho ainda. E como dessa catequese ainda não tivera lições, desconfiou das boas intenções. Mas alguém de senso acha mesmo que para salvar o peixe do rio que saltou para o lago vizinho a solução é lançar-lhe um enorme e ameaçador anzol niquelado? Bom, a solução foi, com a colaboração dessas mocinhas (uma delas arqueóloga FLUP... e mais não digo), utilizar o velho processo com dezenas de milhares de anos, ou mais: espicaçar a fera para fora do covil, cercá-la num canto e atacar vertiginosamente (daí o: CAÇA AO GATO). A arma? Um misto de arma de arremesso e de armadilha móvel: ... uma toalha grossa. Enquanto a sua atenção era chamada para outro ponto, zás!. Nem quis acreditar. À primeira investida, aquela molinha peluda pronta a saltar foi apanhada. Não resistiu (eu ainda tinha nas mãos o cheiro do fiambre..., será que isso teve alguma importância?). Foi logo enrolado (chi!,... quase nem lhe senti o peso ou a forma, era mesmo pequenino) e levantei-o ao nível do telhado do anexo que serve de ponto de contacto com os domínios que já bem conhecia dos passeios colectivos em família. Nesse momento ouve-se um coro de miados fininhos. Não sei como, mas os irmãos pressentiram que algo de especial ia ocorrer naquele instante e era preciso assinalar uma trajectória de fuga segura. Nem o vi depois, só senti de imediato a tolha solta e as pingas grossas de uma chuvada a cair-me nas costas, através da camisa. Sem pena e com pena nossa, foi à sua vida, recebido, fora de alcance da vista pelos irmão e pela gata cuja cabeça aparecera num canto afastado, sorrateira, olhos bem abertos, expectante, como sempre. Tudo acaba bem, com uma recepção familiar, só percebida pelas pontas oscilantes de vários rabitos fininhos alçados a tremelicar do outro lado da cumeeira do telhado do anexo, confraternizando.
Até já! Vemo-nos por aí! Viva a liberdade (também) dos gatos dos telhados! Abaixo a doce prisão dos revisionistas cuja cartilha é ronronar em colos, rasgar cortinas, comer croquetes sabe-se lá de quê e posar para fotos com ar dengoso! Viva a caça às pombas e aos pardais, e outra bicharada! Viva o dormir ao sol em telhado de lusalite quente, o rebolar lentamente pelos cobertos inclinados. Viva o lamber desalmado de um corpito miseravelmente encharcado pela chuva para, meia hora depois, qual fénix invertida --não pelo fogo, mas pela água--, renascer num nobre e garboso gato de pêlo lustroso! Viva a independência! E o correr e o saltar, o subir às árvores com ímpeto, para nada, por gozo puro. Vivam as lutas assanhadas por território e a partilha de alguma pele de galinha atirada lá do alto! Vivam os prazeres de se sentirem afagados por um ramito nas costas ou uma simples esquina! Porque estão vivos, porque nasceram gatos, porque vivem como gatos e hão-de morrer gatos, orgulhosamente gatos. Verdadeiros gatos, que não precisam tomar ar de felizes nem de domesticar humanos por comida e sobrevivência.

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